sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Estudo Sobre Preto Velho - Parte 2


A RELIGIÃO DE PRETO VELHO


Em vários estudos que fizemos acerca da espiritualidade, aprendemos que um Guia de Luz, por mais evoluído que seja, é um indivíduo e, desta forma, leva ao plano espiritual características bastante singulares, que é exatamente o que diferencia o trabalho de cada guia, mesmo sendo da mesma falange. Apenas para exemplificar, é bastante comum vermos nos terreiros, em uma mesma gira, dois ou mais Guias com o mesmo nome (portanto, representando a mesma falange de trabalho), porém falando de forma diferente um do outro e com trejeitos e rituais próprios. Existe, logicamente, a contribuição do médium e suas referências, o que pode trazer de um grau mais ou menos intenso, algum animismo na incorporação, porém o que existe são entidades/indivíduos com uma visão muito própria de sua missão perante a Espiritualidade configurada para trabalhar na Umbanda, e é isso que torna cada incorporação distinta entre si.

O que sempre me deixou intrigado em relação às manifestações da Espiritualidade, no entanto, não foram as distinções, mas os pontos em comum entre elas. Justificar as diferenças é bastante simples, seja qual for o ponto de vista, tanto olhando pelo prisma da individualidade de cada guia, seja por um olhar mais maquiavélico da coisa, entendendo que pode existir um costumeiro animismo no médium que recebe as forças de um guia e imprime naquela manifestação, suas vontades ou conhecimentos. Quando olho o cenário umbandista, onde temos terreiros espalhados por todo Território Nacional, é bastante crível que exista uma verdadeira manifestação da Espiritualidade, pois há anos existe uma série de pontos em comum nos trabalhos dos Guias Espirituais. Pai Joaquim de Angola incorporado em um médium em São Paulo vai possuir muitos pontos em comum com outras incorporações de Pai Joaquim de Angola em um médium em Belém do Pará, por exemplo. E isso acontece há décadas, muito antes do advento da internet (o que poderia justificar espalhar o conhecimento entre as pessoas).

Uma das características nas manifestações dos Pretos Velhos está na constante referência dos guias a Jesus Cristo. Não necessariamente à Bíblia ou a conceitos do dogma católico ou protestante, mas a Jesus Cristo. Não me cabe aqui questionar essa referência, afina de contas Jesus Cristo é, sem sombra de dúvidas uma das pessoas mais iluminadas e abençoadas que já andou entre nós, sendo por muitas, e me incluo neste rol, o ser mais iluminado a andar entre nós. O questionamento, no entanto, existe no fato histórico de que, já quando a Umbanda foi anunciada, o número de cristãos na África era bastante acanhado em relação aos muçulmanos, por exemplo. Vejamos como eram as religiões das principais nações que trouxeram seus escravos para o Brasil:

  • Angola: possuía uma forte presença islâmica e também de religiões tradicionais africanas. Com o passar dos anos, através de uma \ lenta, mas assertiva ação dos católicos (especialmente portugueses e italianos) o cristianismo foi se tornando a religião predominante (hoje representa quase 95% de toda população angolana), mas na época da escravidão os cristãos eram em um número pífio.
  • Nigéria: desembarcaram aos montes na Bahia durante o processo de colonização brasileiro, para trabalharem no cultivo do fumo. Se hoje quase metade da população é islâmica, na época da escravidão, os escravos cristãos sequer existiam pois tinham em seus cultos próprios (o que se assemelha ao que o Candomblé pratica no Brasil) a sua base religiosa.
  • Guiné: a existência de escravos cristãos vindos da Guiné é praticamente inexistente. A fundação do país em si nos remete a união de vários povos distintos que resolveram fundar um país tendo como base religiosa o culto à Ancestralidade de uma forma bastante pessoal, ao ponto de entrarem em uma guerra santa (conhecida como jihad) para impedir que o islamismo fosse a religião obrigatória por colonizadores. Ainda hoje mais da metade da população é muçulmana.
  • Congo: um dos países mais novos, passou a enviar escravos para o Brasil apenas no final do século XVIII, e eram conhecidos como sendo mais brutos, muito mais voltados para sua ancestralidade que os escravos de outras nações. Eram bastante arredios e definitivamente não eram cristãos. Hoje mesmo ainda continuam sendo um país bastante voltado para o culto aos Deuses (orixás) e a única religião que conseguiu entrar e se afixar (hoje possuem pouco mais de 10% da população) é justamente o islamismo.


O cristianismo católico já tinha chegado na África, porém estava longe de ser algo enraizado, principalmente junto aos escravos. Sabemos que devido às circunstâncias existentes, os escravos sincretizavam seus Orixás com os santos católicos, mas isso era mera necessidade prática para que não sofressem ainda mais as mazelas da escravidão, porém não existe qualquer relato de escravos cristãos em uma quantidade realmente representativa, especialmente os indivíduos que vieram para o Brasil no começo da colonização. Então por qual motivo existe desde o início da anunciação da Umbanda a referência dos Pretos Velhos a Jesus? Por que não Maomé ou até mesmo a referência ao orixá que cultuava?

A Umbanda é uma religião que, logo em seu início, se mostrou configurada para abraçar a todos e todas que sentissem a necessidade, não limitando as ações que um fiel deveria ter para se tornar umbandista, sendo a prática da Caridade a grande estrada a ser trilhada, mas não oferecendo um universo limitado de escolhas, com pouquíssimos dogmas e, principalmente, sem ter um livro sagrado a ser seguido (Bíblia, Torá, Alcorão, etc). O que ocorre, no entanto, é que apesar de ser abrangente e, em tese, poder ser espalhada pelo mundo inteiro, a Umbanda foi anunciada no Brasil e, em sua apresentação, tinha um forte apelo popular brasileiro, tendo na figura do índio, os verdadeiros ancestrais de nosso país, um de seus pilares, ao ponto de ser anunciada por um Caboclo. O Brasil é um país com tamanho continental há muito tempo, então em seu anúncio, a Umbanda tinha pela frente a missão árdua de trazer uma nova palavra de Caridade perante uma sociedade quase que toda ela católica.

A Umbanda não iria para frente e prosperaria se não tivesse que se adaptar às situações que se colocavam presente. A presença dos atabaques, por exemplo, só foi manifestada décadas após a anunciação da Umbanda, porque quase todos os umbandistas no início vieram do kardecismo, prática espiritualista muito baseada em rituais calmos, sem sequer músicas; imaginem a confusão que seria já introduzir atabaque, álcool e fumo nos primeiros rituais. Provavelmente não estaríamos sequer lendo esse texto. Com os Pretos Velhos se referindo constantemente a Jesus Cristo era algo parecido, porém ao invés de ocultar algum elemento para afastar os trabalhadores, falar daquele que os católicos chamavam de Filho de Deus, era um convite para a prática da fé em um lugar comum. Ninguém conhecia Oxalá, mas todos conheciam Jesus.

Sabendo disso, já em sua doutrinação e preparação no Plano Espiritual para trabalhar na Umbanda, os Pretos Velhos falangeiros (que nada mais são do que os “chefes” das falanges de espíritos de luz, ou os primeiros escravos a serem convidados pela Espiritualidade para trabalharem na Umbanda) tiveram que aprender sobre o cristianismo para falar ao trabalhador umbandista algo com maior propriedade. Neste aprendizado, muitos desses espíritos encontraram na vida do Mestre Jesus um norte a ser seguido e acabaram se convertendo (sim, Guias de Luz também se convertem) e, sendo assim, puderam falar com maior propriedade sobre Jesus. Claro que mesmo enquanto encarnado os escravos conheciam, sim, Jesus, mas era um conhecimento bastante raso e poucos eram realmente convertidos, especialmente os líderes, aqueles mais antigos que serviam como norte moral aos demais. No Plano Espiritual, puderam conhecer mais a fundo e se tornaram grandes trabalhadores de Sua obra.

Um guia que atua na falange de Pai Joaquim de Angola, através da mediunidade de Carlos Parada, fala a respeito da importância de Jesus, e do que ele representa:
Jesus via a todos como rei e rainha porque via o eterno em cada um, porque se Ele (Deus) é o princípio Divino, então todos tem que ser do Princípio Divino. Nós somos tudo feito na mesma criação. Temos que enxergar Deus dentro de cada um, mesmo que aquela pessoa seja humilde, como fez São Francisco de Assis quando foi abraçar o leproso”.

Preto Velho enxerga Jesus como alguém que consegue ver o princípio Divino em cada um, sendo assim consegue verdadeiramente tratar a todos com igualdade e respeito. A citação de Jesus servia como chamariz para as pessoas, porém não se limitava a isso. A vida terrena Dele serve como constante base para que os Pretos Velhos exemplifiquem aquilo que querem dizer. Outra passagem da conversa com Pai Joaquim exemplifica isso de forma bastante clara:

Na parte que Jesus disse ‘perdoai-vos Pai porque eles não sabem o que fazem’, ele já sabia o que ia acontecer. Ele viu que dentro do ser humano existe uma fera, e a fera ataca quando ela se sente ameaçada. Então ele viu que o ser humano não era tão bom assim, e o aprendizado foi saber que ele estava fazendo sua parte, então eles vão ter que fazer a parte deles. Digo isso porque o ser humano foi fera na hora de crucificar Jesus. Ele deu seu recado, que foi a maior coisa que ele podia dar.
Jesus ensinou como amar, e para amar você tem que matar a fera dentro de si”.

Analisando o histórico dos escravos, perceberemos que se o cristianismo não era tão comum a eles em sua época de encarnados, o islamismo seria algo mais palpável, mais próximo de suas realidades no Continente Africano. Logicamente não seria prudente logo de cara tentar trazer trabalhadores cristãos para a Umbanda falando de Maomé, porém muitos dos ensinamentos de Jesus foram replicados no Alcorão. Dois dos principais pilares do islamismo são a Fé, a Oração e a Caridade. Quando um Preto Velho fala de caridade segurando um rosário as mãos, nós de forma automática remetemos a Jesus, mas é um conceito que cabe muito bem a um muçulmano, por exemplo.

A religião do Preto Velho, portanto, não é o cristianismo nem o islamismo ou qualquer outra religião configurada pelo homem. Nem mesmo a Umbanda. A religião que Preto Velho traz no coração é a única capaz de abraçar a todos, independente de quem sejam. Sua religião é a Caridade.


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