AS PRIMEIRAS CACHIMBADAS
DE PRETO VELHO
A Umbanda foi anunciada em 1908, através da mediunidade
do jovem Zélio Fernandino. A primeira manifestação do Caboclo das Sete
Encruzilhadas foi um dia antes do anúncio da religião, e foi feito durante os
trabalhos em um Centro Kardecista, em Niterói. Para a época, o Kardecismo em si
já não era muito bem visto por boa parte das pessoas que, católicos por uma
osmose social, não creditavam que existiria a reencarnação, que é um dos
pilares do Espiritismo.
Os kardecistas, no entanto, eram pessoas com notável
busca pelo conhecimento da Espiritualidade, tendo como base os vários livros de
Allan Kardec (se somarmos a quantidade de páginas desses livros, eles superam
com folga a Bíblia Sagrada). Sendo assim, eram pessoas que podiam até
desagradar boa parte da sociedade católica, mas tinham seu respeito e não eram
alvos de manifestações de ódio. Não eram perseguidos. Quando a Umbanda foi
anunciada, vários kardecistas questionaram o fato da religião ter em sua base,
espíritos atrasados ao ponto de ainda manterem suas características anteriores
como encarnados, sendo um índio, por exemplo. Pelo pensamento kardecista,
quando alguém desencarna e é resgatado pela Luz e consegue trabalhar ajudando
os encarnados, essa pessoa se desfaz de sua aparência física enquanto encarnado
e decide como se apresentará. Uma pessoa que desencarnou sem as pernas não
trabalharia para a Espiritualidade, segundo os kardecistas, sem suas pernas.
Se os questionamentos do porque um índio anunciaria uma
religião, a presença naquele instante do espírito de um escravo, se
apresentando arcado como se anda sofresse pelos males da carne, era realmente
algo inimaginável. Se olharmos hoje a situação dos negros no Brasil, podemos
ver que ainda existe um preconceito prático muito latente na sociedade;
imaginemos, então, o ano de 1908, onde estávamos há apenas 20 anos da assinatura
da Lei Áurea. A maior parte dos escravos recém libertos ainda estavam vivos e,
não raro, muitos ainda trabalhavam como verdadeiros escravos (independente da
assinatura da Lei). A figura do cidadão negro sofria um preconceito muito grande,
então colocar um escravo como um dos alicerces da religião, era mais do que
algo arrojado; era uma verdadeira afronta social.
A Umbanda sempre foi e continua sendo uma religião que transcende
o que conhecemos como padrão. É comum os excluídos serem representados na
Umbanda, mas nossa religião nunca teve o objetivo de ser restringida a meia
dúzia de pessoas, muito pelo contrário. A Umbanda sempre teve todas as condições
para abraçar a todos e ser “a grande religião” de toda uma sociedade. Dito
isso, como poderiam os Guias de Luz trazerem uma grande quantidade de fiéis
para a religião, fazendo com que a Umbanda fosse cada vez mais conhecida, colocando
um Exu todo vestido de preto, bebendo seu marafo e baforando um charuto? Se
isso ocorresse desde o início, hoje não existiria a Umbanda.
Logo nas primeiras manifestações de Preto Velho (Pai
Antônio, também pela mediunidade de Zélio Fernandino), tivemos a informação de
qual trabalho seria realizado por aquela linha. As palavras dos nossos amados
vozinhos sempre foram doces e traziam o conhecimento empírico adquirido pelas
suas passagens conosco, mas também a referência àquela pessoa que acabou sendo
o grande mestre, o qual já citei no capítulo anterior: Jesus Cristo. Quando um
Preto Velho trabalha, manipula as energias com suas mirongas, mas ele não tem a
necessidade de verbalizar que está fazendo isso ou aquilo. Não há mal algum em
alinhar as energias de alguém ao mesmo tempo que fala sobre Fé e sobre como
Jesus Cristo mostrava como agir mediante determinada situação incômoda na vida.
Esta forma inicial de atender, ajudou a diminuir um pouco
o preconceito com a Umbanda, além de fazer um paralelo costumeiro entre Preto
Velho e Jesus Cristo, sendo uma das entidades mais procuradas até hoje nos
terreiros de Umbanda. Mas como eram os trabalhos dos vozinhos na época? A Umbanda
Branca, vertente fundada pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas, Pai Antônio e
Orixá Malê, tinha em sua ritualística o uso apenas da roupa branca, os fios de
conta, defumadores, velas e pontos riscados. A maioria dos assistidos que
buscavam atendimento com esses guias, queriam cura para doenças ou apenas
conhecer os conceitos da nova religião. Para conhecer a Umbanda, todos os guias
podiam servir como referência, porém para cuidar de assuntos relacionados à
saúde, via de regra os atendimentos eram feitos por Pai Antônio, o que fez com
que de uma forma bastante natural, os primeiros atendimentos fossem realizados
prioritariamente por Preto Velho. Caboclo conduzia o trabalho, Malê (que nada
mais era do que Exu) se dedicava à proteção do terreiro e às desobsessões,
enquanto Pai Antônio curava. O primeiro ponto cantado de Pai Antônio mostrava
essa sua característica de trabalho:
“Dá licença Pai
Antônio
Que eu não vim lhe visitar
Eu estou muito doente
Vim pra você me curar
Se a doença for feitiço
Bulará neste congá
Se a doença for de Deus
Pai Antônio vai curar
Coitado de Pai Antônio
Preto-velho curador
Foi parar na detenção
Por não ter um defensor
Pai Antônio é quimbanda, é curador
Pai Antônio é quimbanda, é curador
É pai de mesa, é curador
É pai de mesa, é curador”
Que eu não vim lhe visitar
Eu estou muito doente
Vim pra você me curar
Se a doença for feitiço
Bulará neste congá
Se a doença for de Deus
Pai Antônio vai curar
Coitado de Pai Antônio
Preto-velho curador
Foi parar na detenção
Por não ter um defensor
Pai Antônio é quimbanda, é curador
Pai Antônio é quimbanda, é curador
É pai de mesa, é curador
É pai de mesa, é curador”
As primeiras cachimbadas de Preto Velho na Umbanda também
eram cheias de conversas com grandes aconselhamentos. Era praxe as entidades
ficarem rodeadas de pessoas que, sentadas em admiração à sabedoria daquele Guia
de Luz, escutavam cada palavra de sabedoria. Existe um áudio (abra o link AQUI) onde podemos escutar
alguns minutos da conversa de Pai Antônio com frequentadores e trabalhadores da
Tenda Espírita Nossa Senhora de Piedade. São momentos sem qualquer tipo de
atendimento pontual a alguém, mas uma verdadeira união entre entidade e seus
filhos e assistência. Todos cantando junto os pontos, que eram puxados pelo
Preto Velho, sem qualquer auxílio de atabaques. Com o passar do tempo, esta
referência de ser o grande conselheiro da Fé nos terreiros ficou cada vez mais
enraizada, podendo, então, fazer com que uma outra face de trabalho dos Pretos
Velhos pudesse ser mais conhecida: as mandingas.
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