sábado, 10 de novembro de 2018

Estudo Sobre preto Velho - Parte 3


AS PRIMEIRAS CACHIMBADAS DE PRETO VELHO


A Umbanda foi anunciada em 1908, através da mediunidade do jovem Zélio Fernandino. A primeira manifestação do Caboclo das Sete Encruzilhadas foi um dia antes do anúncio da religião, e foi feito durante os trabalhos em um Centro Kardecista, em Niterói. Para a época, o Kardecismo em si já não era muito bem visto por boa parte das pessoas que, católicos por uma osmose social, não creditavam que existiria a reencarnação, que é um dos pilares do Espiritismo.
 
Os kardecistas, no entanto, eram pessoas com notável busca pelo conhecimento da Espiritualidade, tendo como base os vários livros de Allan Kardec (se somarmos a quantidade de páginas desses livros, eles superam com folga a Bíblia Sagrada). Sendo assim, eram pessoas que podiam até desagradar boa parte da sociedade católica, mas tinham seu respeito e não eram alvos de manifestações de ódio. Não eram perseguidos. Quando a Umbanda foi anunciada, vários kardecistas questionaram o fato da religião ter em sua base, espíritos atrasados ao ponto de ainda manterem suas características anteriores como encarnados, sendo um índio, por exemplo. Pelo pensamento kardecista, quando alguém desencarna e é resgatado pela Luz e consegue trabalhar ajudando os encarnados, essa pessoa se desfaz de sua aparência física enquanto encarnado e decide como se apresentará. Uma pessoa que desencarnou sem as pernas não trabalharia para a Espiritualidade, segundo os kardecistas, sem suas pernas.

Se os questionamentos do porque um índio anunciaria uma religião, a presença naquele instante do espírito de um escravo, se apresentando arcado como se anda sofresse pelos males da carne, era realmente algo inimaginável. Se olharmos hoje a situação dos negros no Brasil, podemos ver que ainda existe um preconceito prático muito latente na sociedade; imaginemos, então, o ano de 1908, onde estávamos há apenas 20 anos da assinatura da Lei Áurea. A maior parte dos escravos recém libertos ainda estavam vivos e, não raro, muitos ainda trabalhavam como verdadeiros escravos (independente da assinatura da Lei). A figura do cidadão negro sofria um preconceito muito grande, então colocar um escravo como um dos alicerces da religião, era mais do que algo arrojado; era uma verdadeira afronta social.

A Umbanda sempre foi e continua sendo uma religião que transcende o que conhecemos como padrão. É comum os excluídos serem representados na Umbanda, mas nossa religião nunca teve o objetivo de ser restringida a meia dúzia de pessoas, muito pelo contrário. A Umbanda sempre teve todas as condições para abraçar a todos e ser “a grande religião” de toda uma sociedade. Dito isso, como poderiam os Guias de Luz trazerem uma grande quantidade de fiéis para a religião, fazendo com que a Umbanda fosse cada vez mais conhecida, colocando um Exu todo vestido de preto, bebendo seu marafo e baforando um charuto? Se isso ocorresse desde o início, hoje não existiria a Umbanda.


Logo nas primeiras manifestações de Preto Velho (Pai Antônio, também pela mediunidade de Zélio Fernandino), tivemos a informação de qual trabalho seria realizado por aquela linha. As palavras dos nossos amados vozinhos sempre foram doces e traziam o conhecimento empírico adquirido pelas suas passagens conosco, mas também a referência àquela pessoa que acabou sendo o grande mestre, o qual já citei no capítulo anterior: Jesus Cristo. Quando um Preto Velho trabalha, manipula as energias com suas mirongas, mas ele não tem a necessidade de verbalizar que está fazendo isso ou aquilo. Não há mal algum em alinhar as energias de alguém ao mesmo tempo que fala sobre Fé e sobre como Jesus Cristo mostrava como agir mediante determinada situação incômoda na vida.

Esta forma inicial de atender, ajudou a diminuir um pouco o preconceito com a Umbanda, além de fazer um paralelo costumeiro entre Preto Velho e Jesus Cristo, sendo uma das entidades mais procuradas até hoje nos terreiros de Umbanda. Mas como eram os trabalhos dos vozinhos na época? A Umbanda Branca, vertente fundada pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas, Pai Antônio e Orixá Malê, tinha em sua ritualística o uso apenas da roupa branca, os fios de conta, defumadores, velas e pontos riscados. A maioria dos assistidos que buscavam atendimento com esses guias, queriam cura para doenças ou apenas conhecer os conceitos da nova religião. Para conhecer a Umbanda, todos os guias podiam servir como referência, porém para cuidar de assuntos relacionados à saúde, via de regra os atendimentos eram feitos por Pai Antônio, o que fez com que de uma forma bastante natural, os primeiros atendimentos fossem realizados prioritariamente por Preto Velho. Caboclo conduzia o trabalho, Malê (que nada mais era do que Exu) se dedicava à proteção do terreiro e às desobsessões, enquanto Pai Antônio curava. O primeiro ponto cantado de Pai Antônio mostrava essa sua característica de trabalho:

Dá licença Pai Antônio
Que eu não vim lhe visitar
Eu estou muito doente
Vim pra você me curar
Se a doença for feitiço
Bulará neste congá
Se a doença for de Deus
Pai Antônio vai curar
Coitado de Pai Antônio
Preto-velho curador
Foi parar na detenção
Por não ter um defensor
Pai Antônio é quimbanda, é curador
Pai Antônio é quimbanda, é curador
É pai de mesa, é curador
É pai de mesa, é curador

As primeiras cachimbadas de Preto Velho na Umbanda também eram cheias de conversas com grandes aconselhamentos. Era praxe as entidades ficarem rodeadas de pessoas que, sentadas em admiração à sabedoria daquele Guia de Luz, escutavam cada palavra de sabedoria. Existe um áudio (abra o link AQUI) onde podemos escutar alguns minutos da conversa de Pai Antônio com frequentadores e trabalhadores da Tenda Espírita Nossa Senhora de Piedade. São momentos sem qualquer tipo de atendimento pontual a alguém, mas uma verdadeira união entre entidade e seus filhos e assistência. Todos cantando junto os pontos, que eram puxados pelo Preto Velho, sem qualquer auxílio de atabaques. Com o passar do tempo, esta referência de ser o grande conselheiro da Fé nos terreiros ficou cada vez mais enraizada, podendo, então, fazer com que uma outra face de trabalho dos Pretos Velhos pudesse ser mais conhecida: as mandingas.

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