Acredito que todo conhecimento deve ser compartilhados, então uma ótima leitura a todos (o trecho vai da página 44 a 63 da referida tese):
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QUEM É EXU?
“Exu é o mensageiro dos outros Orixás, e sem ele nada se faz.” (Pierre Verger)
“Tá chegando a meia-noite, Tá chegando à madrugada, Salve o povo de quimbanda, Sem Exu não se faz nada.” (Ponto cantado para Exu de origem desconhecida; muito popular em terreiros de umbanda, quimbanda e alguns de candomblé)
Estas citações são alguns exemplos de como Exu é tido como importante dentro de terreiros de umbanda, quimbanda e candomblé espalhados pelo Brasil.
Apesar de ter papéis e significados distintos dentro de cada uma destas manifestações religiosas, Exu, temido e adorado por muitos, é a expressão religiosa e a esperança de solução dos problemas de muitos fiéis e frequentadores de terreiros em todo o país.
Sua significação é complexa, dependendo de sua origem e em qual religião se manifesta, tem caráter de divindade, mensageiro, protetor, escravo de outras divindades, demônio, espírito inferior e imperfeito.
Na tradição africana, Exu é o princípio dinâmico que permeia tudo, ou seja, dinamiza tudo; Exu é aquele que permite as passagens (inclusive entre a terra e o além), que permite as trocas simbólicas, que leva e traz as comunicações, pois sem ele não há candomblé. Todo ritual, independente de qual for e para qual orixá é dirigido, é precedido por uma oferenda para Exu, também chamada de despacho.
No jogo oracular dos búzios, é Exu quem leva as perguntas e quem traz as respostas, podendo ser ele mesmo quem responde. É comum se dizer nos candomblés que se o Exu da casa estiver de costas para o terreiro, este não prospera.
Os Exus e pombagiras, geralmente denominados na umbanda “povos de rua”, são utilizados como agentes mágicos de atuação em diversos assuntos do mundo material: dinheiro, relacionamentos, negócios de qualquer natureza, vinganças, trabalhos de ódio, saúde, prosperidade, etc.
Esses “povos de rua”, no caso da umbanda, são espíritos (egún) que já estiveram encarnados e que, quando vivos, eram marginalizados e segregados pela sociedade abastada, mas que transitavam com facilidade na boemia e em seus meandros, onde entraram em contato com a essência de muitas pessoas e diversos estilos de vida. Seria justamente por conhecer as falhas humanas, seus vícios e virtudes é que quando falecidos, esses espíritos se juntam às “correntes”24 de Exu.
Em suas relações com os orixás dentro da umbanda, os Exus são tidos como Guardiões de seus mistérios, as vezes confundidos com ‘escravo’ dos orixás e dos guias espirituais (pretos-velhos, caboclos, etc) e funcionariam como verdadeiros soldados protetores do terreiro e das pessoas a ele ligados. Na umbanda, os Exus estarão sempre a esquerda, contrapondo a outra face da moeda: as correntes de direita. Onde as de direita comandam as falanges e desmancham trabalhos maléficos e os de esquerda podem tanto fazer trabalhos maléficos, quanto desmanchá-los. Mas vai depender sempre da denominação umbandista que o mesmo se manifesta (se for o caso).
Os Exus são amorais, não são nem totalmente bons, nem totalmente maus, podendo desde realizar várias curas, como realizar trabalhos prejudiciais a outras pessoas. Essas características contribuíram com que os Exus fossem identificados com o diabo dos cristãos, e é por isso que vemos nas lojas de artigos religiosos especializados em umbanda aquelas imagens com chifres, rabos pontudos, tridentes, dentes afiados, pés de bode e cabras. Os Exus são constantemente confundidos com os kiumbas (espíritos inferiores que gostam de praticar o mal), que segundo as estórias perpetuadas pelos terreiros, adquirem qualquer forma e são mistificadores.
Hierarquicamente os Exus estão acima dos kiumbas e abaixo dos guias espirituais e orixás de cada terreiro. Dentro da corrente de Exu, existem várias subcorrentes que são classificadas pelos seus nomes: Exu Tranca-Ruas, Exu Quebra-Galhos, Exu Zé Pelintra, Exu Caveira, Exu do Lodo, Exu Veludo, e mais uma infinidade de nomes. Cada uma destas subcorrentes contém uma infinidade de espíritos que atendem pelo nome genérico de cada entidade. Isto explica o fato de poder existir em um mesmo terreiro, dois ou mais Exus Tranca-Ruas ou Zé Pelintras incorporados.
Os trabalhos de culto a Exu dentro dos terreiros de umbanda são caracterizados de duas maneiras: 1) como giras de Exu (trabalhos em que os exus incorporam em seus ‘cavalos’) e 2) Pontos firmados, oferendas e despachos (trabalhos em que os exus atuam invisivelmente, ou seja, sem a necessidade de incorporação destas entidades).
MITOS, SÍMBOLOS E RITOS DE EXU – DA ÁFRICA AO BRASIL
O culto a Exu remonta desde antes do surgimento da umbanda em nosso país, em meados de 1908. Sua origem se encontra na África, principalmente nos territórios localizados em Benin e na Nigéria, lugares onde residem os povos de língua yorubá e jejê, que o denominam de Legbá (VERGER, 1999[b], p. 119), apesar de que nas regiões bantu (Angola, Congo, Moçambique, etc) exista também uma divindade com estas características: Bonbonjira (que se transformou no Brasil em entidade feminina denominada de Pomba-Gira). Com o tráfico de escravos, estabelecido principalmente a partir do século XVI, vieram para o Brasil, mais especificamente para a Bahia, muitos negros sudaneses, em sua maioria yorubás; na bagagem, além da saudade, trouxeram também vários aspectos de sua cultura, entre elas a religião de seus ancestrais.
Na África, Exu Elegbara, mais comumente chamado Exu, é divindade essencial na cosmogonia da religião dos orixás. Divindade mensageira, representa também o princípio dinâmico capaz de dar ordem ou trazer desordem ao mundo (SANTOS, 1976, p. 130 e segs). Um mito conta que Exu, ao ver Xangô (divindade dos raios e trovões) tentar violentar Oxum (divindade das águas doces), impediu que a união se desse pela violência, evitando assim que tempestades torrenciais se precipitassem e destruíssem a terra e a ordem nela estabelecida; neste caso, Exu apareceu como princípio regulador da ordem natural.
Entre os autores clássicos há muita contradição sobre sua origem. Como personagem histórica, os habitantes de Jebu Odé (Nigéria) acreditam ter sido Exu o primeiro rei de Kêto (Alaketo), enquanto que os descendentes de Kêto na Bahia difundem um mito no qual ele teria sido rei em Jebu Odé (PRANDI, 2001[a], p. 47; VERGER, 1997, p. 76; 1999[b], p. 126), ou mesmo um dos companheiros de Odudua em sua chegada a Ilé Ifé (Nigéria).
Frobenius (1912, pág. 232, apud VERGER, 1999[b], pág. 122) assiná-la que em Ilé Ifé acredita-se que ele tenha surgido no leste, ao mesmo tempo em que no leste fazem alusão a existência de duas divindades que se confundem: Exu Elegbará ao norte, entre os yorubás e Legbá, divindade fálica ao sul, entre os fon. Maupoil (1943, pág. 80, apud VERGER, 1999[b], pág. 122) encontrou relatos que afirmam que Legbá era um homem que se transformou em Vodum em Ijebu (antigo Daomé). Em Ijebu, Epega (1931, pág. 21, apud VERGER, 1997[b], pág. 76) encontrou informações de que Exu teria surgido em Ilé Ifé. Todas estas contradições parecem apenas reforçar o caráter extremamente dinâmico e onipresente de Exu.
Sobre seus principais lugares de culto, Verger (1999[b], p. 122-137) aponta: Woro, que Baudin (1884, pág. 44, apud VERGER, 1999[b], pág.122) identificou como a cidade que abriga seu principal templo; Larro, onde os irmãos Lander (1832, pág. 144, apud VERGER, 1999[b], pág, 126) identificaram e descreveram as atividades de um sacerdote de Exu; Pobè, onde os sacerdotes de Exu são ligados a diversos cultos e templos de outros Orixás; Òyó, onde Exu habita o mercado e lhe são consagrados sacerdotes; Abéokuta, onde foram realizados os primeiros relatos sobre Exu; Ondo, onde o culto a Exu é generalizado; Oxogbo, onde Exu é guardião da cidade; Ouidah, onde foram realizadas as principais descrições históricas a respeito de Legbá e muitas outras cidades e regiões da África onde há culto aos orixás e Voduns
A respeito das características icnográficas destas entidades, os primeiros relatos etnográficos feitos na África se referem à Legbá. Pommegorge descreveu um assentamento de Legbá em Ouidah (antigo Daomé) como sendo o de um deus Príapo com as características do falo bem exageradas e desproporcionais e Duncan (1847, v. I, pág. 114, apud VERGER, 1999[b], pág. 133) o descreveu como sendo um montículo de argila com formato que caricatura um homem de cócoras. As estátuas de Legbá apresentam
um caráter lascivo e erótico (chegando a ser cômicas), enquanto que as de Exu, contém colares de contas, fileiras de búzios, cabacinhas, a cabeça adornada com chapéu pontudo (onde estaria escondido uma lâmina que lhe sai da cabeça) e carregando um porrete em formato fálico: ogó, instrumento mágico que lhe permite atrair coisas localizadas a grandes distâncias e percorrer as mesmas em pouquíssimo tempo, e com o qual faz gestos obscenos para as platéias presentes nas festas e comemorações religiosas na qual toma parte no corpo de uma de suas iaôs.
Exu Elegbará tem seus assentamentos representados por montículos de terra enfeitados com búzios que lembram os olhos, a boca e o nariz. Outra representação muito comum é através da pedra laterita25, onde são depositadas suas oferendas. Verger (1999[b], p. 127) não identificou entre os yorubás nenhum assentamento de Exu que apresentasse o volumoso falo de Legbá.
Apesar das características fálicas de Legbá, Verger (1999[b], p. 127) rejeita a idéia de que esta divindade seja responsável pela fecundidade e pela copulação; para Verger, a presença do falo “é a afirmação de seu caráter truculento, violento, desavergonhado e o desejo de chocar os bons costumes”
Tanto no Brasil como na África, as cores de Exu são o preto e o vermelho. Seus assentamentos no Brasil são simbolizados pelo tridente de ferro enterrados em pequenos montículos de terra e suas estátuas podem ser feitas de ferro, barro, gesso, madeira, etc., mas na maioria das vezes, sua representação vai conter algumas destas características: chifres, pés de bode ou cabra, dentes, unhas e rabos pontudos, capas pretas e/ou vermelhas, tridentes e feições ferozes e traços sombrios (características icnográficas que acabam reforçando a identificação de Exu com o diabo dos cristãos da Idade Média).
Exu é dono do dendê, óleo extraído do dendezeiro e fundamental tanto para a liturgia do candomblé, por ser portador e veículo poderoso de axé, como também para a culinária afro-descendente (LODY, 1992, pp. 09-11). Exu também é ligado ao fogo, que pertence ao Orixá Xangô; ligação esta que também pode ter contribuído para associar Exu ao diabo dos cristãos (o elemento fogo associado ao inferno).
No Brasil, sua primazia no candomblé é inegável, onde goza do direito de ser o primeiro a receber as oferendas em todo e qualquer ritual ou “trabalho”, mesmo os dirigidos a outras divindades. Esta primazia é legitimada por mitos perpetuados para a manutenção da ordem e status quo da religião (ELIADE, 2000, p. 08), como por exemplo, no mito em que cumpre o preceito de respeito e submissão, sendo o único a usar na cabeça o ecodidé (pena de papagaio vermelho) na presença de Olodumaré (o Deus supremo) e recebendo deste a primazia das homenagens (PRANDI, 2001[b], pp. 42-44). Em outro mito, a fome de Exu, que causava o desaparecimento de todos os alimentos da terra, foi aplacada por Orunmilá (orixá do oráculo de Ifá), quando este determinou que para haver harmonia e abundância
entre os homens Exu deveria comer em primeiro lugar.
No candomblé, seu status é de orixá mensageiro, como na África, estabelecendo o contato dos homens com os outros orixás. Esta função está bem estabelecida no jogo oracular dos Búzios, onde é Exu quem leva as perguntas e traz as respostas, traduzindo-as, sendo às vezes, (como já foi dito) ele próprio quem as responde (PRANDI, 2001[a], p. 48). Mesmo no oráculo de Ifá (opelê-ifá), do qual o jogo de búzios é uma variante mais simples, Exu aparece como o orixá que revela os segredos da adivinhação para Ifá e posteriormente o revela também aos homens, pois Exu é o princípio comunicador de tudo e de todos.
Dono das entradas e passagens, Exu têm seus assentamentos nas entradas das casas e dos terreiros; na África, principalmente no Benin e na Nigéria, Exu está na entrada das cidades, vilarejos, feiras, etc (VERGER, 1997, p. 76). Bastide (1978, pp. 179-182) afirma que no Brasil, cada terreiro de candomblé têm dois exus assentados, o primeiro deles de caráter extremamente arredio, agressivo e virulento estaria assentado na entrada do Ilê Axé (terreiro), enquanto o segundo, com características mais amenas, às vezes brincalhão, sedutor e cortês, em outras sério e conselheiro, mas sempre vaidoso e orgulhoso de sua posição, chamado muitas vezes de “compadre”28, está assentado na entrada do barracão onde são realizadas as festas públicas.
Sabe-se, entretanto, que qualquer terreiro de candomblé pode apresentar mais de dois Exus assentados, podendo variar este número de acordo com as qualidades de Exu presentes no terreiro. Exu também é o dono das encruzilhadas, atribuição e qualidade que recebeu de Oxalá (PRANDI, 2001[b], p. 40); qualidade esta que manteve na umbanda, sendo também o espaço sagrado onde recebe suas oferendas e despachos.
Prandi (1996, pp. 67-72) afirma que a umbanda, influenciada pelas
concepções cristãs do catolicismo e do kardecismo, instituiu a divisão entre o bem e
o mal (mesmo que relativo) através da divisão de sua hierarquia espiritual em “linha
da direita” e “linha da esquerda”. A linha da direita é composta por entidades de luz
evoluídas do plano espiritual, como os caboclos e pretos-velhos e a linha da
esquerda é composta por Exus e Pomba-Giras, entidades atrasadas, sem luz e
amorais, que podem, devido ao seu grau de evolução, trabalhar tanto para o bem
(i.e. trabalhos de cura, desfazer feitiços) quanto para o mal (i.e. trabalhos de morte,
vingança e amarração), conforme seja o pedido (SAIDENBERG, 1978, pp. 54-58 &
ALMEIDA, 1987, p. 17).
Muitas atribuições de Exu passaram do candomblé para a umbanda, onde seus “pontos” são “firmados” nas entradas dos terreiros e também dos barracões, os exus de umbanda passaram a ter características específicas de acordo com o terreiro (mas sempre como egún), a história de vida de seus dirigentes, e o sincretismo praticado em cada casa. Para Almeida (1987, pp. 16-17), os Exus atuais se diferem da figura mítica de Exu trazida da África e dos Exus das primeiras décadas do século XX.
Na umbanda atual, os Exus seriam entidades em desenvolvimento espiritual e moral (SAIDENBERG, 1978, p. 57 & ALMEIDA, 1987, p. 17). Para DellaMonica (1993, pp. 68-69) os Exus e Pomba-Giras de umbanda não têm uma forma específica, podendo adquirir qualquer forma de acordo com sua vontade. Alguns dos Exus e Pomba-Giras citados por ela são: Exu Marabô, Exu Quebra-Galhos, Exu da Capa Preta (todos ligados a Xangô); Exu Omulu (ligado ao Orixá Omulu); Exu Caveira (ligado a Orunmilá), Exu Sete Encruzilhadas (ligado a Oxalá), Exu Tranca-Ruas, Exu Tranca-Tudo, Exu Tira-Teimas, Exu Tronqueira
(ligados a Ogum); Exu Veludo (ligado a Oxossi); Exu Pedra Negra (ligado a Tempo32); Exu Calunga (ligado a Oxum), Pomba-Gira Cigana (ligada a Oxum);
Pomba-Gira da Praia (ligada a Yemanjá), Pomba-Gira Maria Padilha (ligada a Nanã)
entre tantos outros Exus e Pomba-Giras (DELLAMONICA, 1993, pp. 77-80).
Vale lembrar que existe uma infinidade de Exus que são cultuados em diversos terreiros
de umbanda em todo o Brasil, e mesmo a lista de correlações entre os Exus e os
orixás a que estariam ligados vai depender sempre de terreiro para terreiro.
No candomblé cada Orixá tem seu peji (lugar onde se encontra o assentamento), chamado de “casa”, em uma localização específica dentro do Ilê Axé. Esses assentamentos podem ser públicos ou privativos aos iniciados, tendo Exu (ou vários Exus do terreiro) também a sua casa, geralmente próxima à porta de entrada do mesmo ou próximo a matas e passagens importantes. Alguns terreiros de umbanda mantiveram esta tendência, principalmente no caso de Exu, que chega a ter um barracão específico para a realização de suas giras e festas.
Mas, recentemente, tem-se observado que muitos terreiros de umbanda não realizam
mais as giras de Exu e em muitos casos, não os mantém nem mesmo como entidades de “pontos firmados” protegendo seus terreiros. Em entrevista realizada com Pedro Miranda, dirigente de um dos mais antigos e respeitáveis terreiros de umbanda no Brasil, “Tenda Espírita São Jorge” fundada em 1936, este declarou: "... desde o início a Tenda São Jorge fez gira de Exu. [...] Nós temos alguns segmentos religiosos respeitáveis dentro da Umbanda que não fazem gira de Exu. Por exemplo, a Tenda Nossa Senhora da Piedade e o Centro Espírita Caminheiros da Verdade. Nosso irmão João Carneiro dizia: ‘Esse negócio de que de que na Umbanda, sem exu não se faz nada, é uma palhaçada’. [...] A tenda espírita Mirim, do Caboclo Mirim, [...] que deixou 43 filiais, era uma coisa espetacular e também não fazia gira de Exu".
Mas apesar de também ser um fenômeno histórico, visto que segundo o entrevistado, o primeiro terreiro de umbanda fundado em 1908 por Fernandino Zélio de Morais, “Nossa Senhora da Piedade”, não praticava a gira de Exu, é também um fenômeno novo, visto que em várias reportagens (publicadas principalmente no Jornal de Umbanda Sagrada e na Revista Espiritual de Umbanda) e sites e páginas da web que tratam sobre o assunto, uma das perguntas repetidas a todos os praticantes de umbanda é se realizam giras de Exu, e o que acham daqueles que não a fazem ou deixaram de fazer.
O que aconteceu com a primazia mítica de Exu sobre os outros Orixás para o recebimento de obrigações e oferendas? Os Exus deixaram de ter a função de mensageiros? Os Exus desapareceram dos terreiros de umbanda ou foram “remanejados” para outras funções devido a uma ressignificação de sua imagem e personalidade? Seria por causa de sua identificação com o Diabo cristão? Será uma resposta às denominações cristãs, mais recentemente as neopentecostais que utilizam principalmente a figura de Exu para atacar as religiões afro e tentar agregar novos adeptos convertidos ou temerosos de sofrerem os ataques de Exu? Ou devido a uma tendência moderna (ou mesmo pós-moderna) de sistematizar uma teologia e doutrina única para a umbanda, diferenciada do candomblé, onde esta tendência a ressignificação é explicita, mas na qual é negado qualquer influência de outras tradições?
Mas apesar dos avanços de pesquisa, estes aspectos atuais sobre Exu têm permanecendo obscuros por falta de estudos mais específicos sobre esta figura de fundamental importância dentro dos cultos afro. No caso específico da ressignificação ou a supressão (desaparecimento) da gira de culto a Exu dentro da umbanda, derivada das tradicionais matrizes africanas, pode apresentar três aspectos, relacionados acima nas três últimas perguntas, mas colocadas aqui como hipóteses: a) Ser fruto da identificação com a imagem do diabo cristão, b) com a moral apregoada pelo espiritismo com o qual a umbanda está ligada desde seu nascimento, e c) por uma tendência a sistematizar uma teologia e doutrina umbandista.
O QUE MUDOU?
EXU E AS PRINCIPAIS CORRENTES DE PENSAMENTO UMBANDISTAS
Enquanto na África seus mitos, citados em parte anteriormente, propagam sua importância primordial, no Brasil e na umbanda ele é legado a ser ‘escravo’ de outras divindades e entidades.
É fato consumado que a umbanda já nasce oficialmente sem giras para Exu na Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade. Mas quando surgem oficialmente dentro da umbanda nos anos 40 sob os auspícios do Caboclo Tupinambá, já surgem com a principal das diferenças: Exu-orixá da África e do candomblé se transformando em Exu-egún na mbanda brasileira. Mata-se a divindade Exu e num processo de “morte natural”, Exu se transforma em egún, um espírito de morto.
Com a premissa de Exu, o orixá, ter se transformado em Exu, um egún, sua importância e função são sistematicamente modificadas. No episódio do Caboclo Tupinambá, já acontece uma mudança de premissa. Ao invés de vir antes das outras entidades, eles vêm depois destas para trabalhar (RONTON, 1989 p. 10), o que já demonstra claramente estar Exu sendo preterido em sua primazia.
Outra mudança evidente neste processo de ressignificação é a forma de comunicação com Exu. Na África, tal qual nos candomblés mais tradicionais fala-se com Exu ou com qualquer outro orixá somente através de oráculos: Opelê-Ifá, cauris, búzios, obi, orobó, etc (BRAGA, 1988, pp. 75, 78-79, 95-97). Na umbanda, a consulta para se falar com Exu passa a ser através da incorporação da entidade na faculdade mediúnica de algum indivíduo que a tenha.
É interessante notar que apesar de Exu ter sofrido uma ressignificação tão acentuada, algumas de suas características e domínios são mantidos na maioria das casas de Umbanda: as entradas, as encruzilhadas, as cores preto e vermelho e mesmo a premissa de que Exu tanto pode fazer o bem quanto fazer o mal. Este último aspecto é evidente na dualidade apresentada neste ponto cantado:
“Exu que tem duas cabeças, Ele faz sua gira com fé (2x) Uma é Satanás dos Infernos E a outra é de Jesus Nazaré”
Exu é associado ao Diabo em seu aspecto maléfico e a Jesus em seu aspecto de fazer o bem.
Na tentativa de responder as questões formuladas, principalmente no que concerne a sistematização da teologia e da doutrina de umbanda e para que possamos compreender com mais clareza estas modificações na imagem de Exu, se faz necessário abordar as correntes de pensamento onde elas aconteceram. As escolas analisadas atendem ao fato de apresentarem uma sistematização da teologia e doutrina umbandistas e que no corpo de suas explicações abraçam a figura de Exu. Estas escolas são:
1) Escola de Mirim do Caboclo Mirim;
2) Umbanda Esotérica (Aumbhanda) de W. W. da Matta e Silva;
3) Umbanda Iniciática (Ombhandhum) de Rivas Neto; 4) Umbanda Sagrada de Rubens Saraceni.
Ponto comum para estas escolas é que todas elas rejeitam a ideia de que a figura de Exu está associada ao diabo dos cristãos.
A Umbanda da Escola de Mirim não trabalha fazendo giras específicas (com dias e horários exclusivos) a Exu. Para eles Exu é um “agente mágico universal”, entidade de ação, podendo ser ao mesmo tempo ‘neutro’, ‘positivo’ e ‘negativo’ (DECELSO, sd, p. 24 e segs.). Na Escola de Mirim, Exu é uma entidade tripolar, o que justifica o uso do tridente, onde cada uma das ponteiras representaria uma polaridade; o que faz de Exu essencial em qualquer trabalho por sua capacidade de transformar as energias do ambiente, atuando sempre sob a égide dos mestres espirituais da umbanda a quem devem prestar contas.
Na umbanda do Caboclo Mirim “suas sessões de caridade sempre foram muito produtivas, pois todos davam sua contribuição para alcançar o bem-estar e a cura de seu semelhante: do encarnado ao desencarnado, do Caboclo ao Exu, todos participavam simultaneamente do atendimento ao público, com discrição e perfeita harmonia”
Na Umbanda Esotérica, Exu é o agente kármico responsável pelo cumprimento da lei e da justiça. É ele quem executa a “lei do retorno”, ou seja, é ele quem traz o positivo para quem faz o bem e o negativo para quem faz o mal (MATTA E SILVA, 1997, p. 40 e segs.).
W. W. da Matta e Silva apresenta em “Umbanda de todos nós” um intrincado sistema de identificação etiológica para explicar a origem da palavra Exu; o que em última análise poderia explicar a própria origem de Exu dentro de seu sistema de pensamento tido como esotérico:
"A palavra EXU, cremos, é corruptela ou correspondência fonética de ‘Yrschú”, que de 55 séculos para cá, vem encarnando o Princípio do Mal. Yrschú [...] foi o nome do regente que comandou o ‘Schisma’ indiano, que estremeceu o Mundo dessa época... A vibração malévola da palavra Yrschú teve, logicamente, no espaço, seus afeiçoados, que encarnam nela os princípios negativos..."
Para W. W. da Matta e Silva, a umbanda, nos seus fundamentos espirituais, é composta por Sete Planos da Lei, tanto nos seus aspectos positivos, quanto nos seus aspectos negativos. Os aspectos positivos seriam relacionados ao desenvolvimento e ordenação do mundo e estariam representados da seguinte forma: Orixalá (A Essência Divina), Yemanjá (O poder oculto da palavra), Yori (O poder do verbo), Xangô (O poder do conhecimento), Yorimá (O poder da palavra da lei), Oxossi (O poder da vontade) e Ogum (O poder do pensamento criador) (DELLAMONICA, 1993, pp. 83-86)
Em contrapartida os Sete Planos Negativos que correspondem aos Positivos são todos chefiados por Exus e estão distribuídos da seguinte forma: Exu Sete Encruzilhadas (corresponde à vibração de Orixalá), Exu Pomba-Gira (corresponde a Yemanjá), Exu Tiriri (corresponde à vibração de Yori), Exu Gira-Mundo (corresponde à vibração de Xangô), Exu Tranca-Ruas (corresponde à vibração de Ogum), Exu Marabô (correspondem à vibração de Oxóssi) e Exu Pinga-Fogo (corresponde à vibração de Yorimá) (MATTA E SILVA, 1997, pp. 40 e segs.).
Exu, portanto, dentro da Umbanda Esotérica, não pratica o mal porque é mau, mas sim porque ele é o agente responsável pela execução do karma segundo o merecimento das pessoas. Na Umbanda Iniciática (Ombhandhum), derivada da Esotérica, Exu é um Arcano que guarda todos os segredos iniciáticos, sendo portanto o guardião dos mistérios e segredos da Síntese Religiosa.
É Exu quem guarda os segredos das forças sutis da natureza, ajuda a criar e renovar todas as forças dos reinos mineral, vegetal e animal e dos elementos terra, fogo, ar e água, além de proteger os segredos de outras dimensões da vida. Por conhecer todos estes segredos, é Exu quem executa a Magia e a Justiça (NETO, 1993, pp. 15 e segs.).
Na Ombhandhum, Exu é uma entidade telúrica, apresentando aqui uma dimensão tripolar; por estas características, Exu é usado nos trabalhos de limpeza e descarga (NETO, 1993, pp. 15 e segs.). Novamente aqui não existe a perspectiva de que Exu é mal, mas de que ele apenas faz retornar o mal a quem o faz, estando ligado direta e exclusivamente, neste caso, a parcela passiva do karma (reação) (NETO 1993, pp. 15 e segs.). Suas origens nesta modalidade de umbanda são muito semelhantes à Esotérica, por isso não faremos menção a ela.
A Umbanda Sagrada de Rubens Saraceni faz uma diferenciação de Planos Positivos e Negativos semelhante a Umbanda Esotérica, mas um ponto decisivo vai diferenciar as duas doutrinas: a função de Exu. Enquanto na Umbanda Esotérica, o Plano Positivo era contraposto pelo negativo através dos Exus, para Rubens Saraceni (2005, pp. 25 e segs.), Exu não pertence ao Plano Negativo em si, justamente por ser tripolar. A Função de Exu então, seria a de Guardião dos Planos Negativos, que segundo Saraceni (1997, p. 240) não podem ser revelados aos humanos, para que estes não atuem negativamente na vida das pessoas e nos Planos Positivos.
Para Saraceni (1997, pp. 238-240), os Exus não são egúns, pois nunca encarnaram na terra, sendo, portanto, uma espécie de “encantados”, pois pertenceriam a outro plano da criação e estariam trabalhando como Exus para que pudessem se “humanizar”36 e poder então encarnar na Terra e começar seu ciclo de encarnações para que possa evoluir.
Exu é um executor das leis divinas, tanto para o bem, quanto para o mal, além de ser patrono da sexualidade masculina, tendo seu contra-ponto na figura de Pomba-Gira (SARACENI, 2005, pp. 25 e segs.). Para Saraceni (1997, p. 240-241), nem mesmo o nome Exu é apropriado para designar esta entidade e suas funções. Para ele, o nome correto (que lhe foi revelado via psicografia) é Mehór Yê, que significa, segundo ele, “senhor da potência e da virilidade” (SARACENI, 1997 p. 241).
Vimos, portanto, nas explanações acima, que Exu, longe de ser aquela entidade malévola apresentada a nós pelo imaginário coletivo de representação da mesma, é uma entidade com importantes funções, todas elas relacionadas à evolução e a proteção das leis divinas, à qual, em todos os exemplos acima, estão subjugadas a ‘entidades mais evoluídas’.
A pergunta é: Por que ressignificá-lo? Por que é importante para a umbanda que Exu não seja mais visto como uma entidade do mal, ou pior, sendo diretamente e constantemente relacionada ao diabo?
OS ELEMENTOS RELACIONADOS À RESSIGNIFICAÇÃO DE EXU
Levando em consideração que o fenômeno da ressignificação (identificado na
literatura) da imagem e função e Exu é mais evidente do que o da supressão
(desaparecimento) de seu culto, que mesmo quando acontece, está sempre
associado a ressignificação em si, partimos então na tentativa de evidenciar as
variáveis envolvidas na explicação do fenômeno.
Para tal faz-se necessário retornar as perguntas e hipóteses iniciais:
- A primazia de Exu nas oferendas e demais trabalhos relacionados a umbanda acabou? Vimos que sim, como apresentado no episódio amplamente divulgado do caboclo Tupinambá e o início das giras a Exu na umbanda nos anos de 1940 (vide páginas 37 e 58 desta dissertação).
- Exu deixou de ter a função de mensageiros na umbanda? Sim, posto que o mesmo passou a participar ao mesmo tempo dos trabalhos de outras entidades e orixás dentro da umbanda, como visto na citação de Teixeira (sd) referente ao trabalho mediúnico na Escola de Mirim
- Os exus desapareceram ou foram remanejados para outras funções? As evidências apontaram para o fato de que passaram a ser ressignificados (tanto em imagem quanto em função), pois mesmo quando suprimidos, assim foi feito devido a um processo de intensa modificação de seu significado ao qual foi submetido ao longo da história da umbanda.
- Como é evidente que a resposta a todas as perguntas acima são transversalizadas pela questão da ressignificação da função e imagem de Exu dentro do culto umbandista, torna-se necessário à verificação das possíveis hipóteses e suas variáveis relacionadas, a saber:
- A ressignificação de Exu dentro da umbanda é fruto do processo de identificação de Exu com o diabo dos cristãos;
- Esta ressignificação é resposta aos constantes ataques cristãos, mais recentemente de correntes evangélicas neopentecostais.
- A ressignificação de Exu dentro da umbanda obedece a uma tendência moderna de sistematizar a teologia e doutrina umbandista, geralmente considerada tão difusa.
ME Lenny Francis Campos de Alvarenga |
Lenny é formada em psicologia pela PUC de Goiás e tem Mestrado em Ciências da Religião, também pela PUC. Atualmente é professora de Filosofia, Psicologia (coordenadora do Núcleo de Pesquisas), Sociologia, Antropologia Jurídica, Antropologia, Antropoformismo e Zooformismo, Antropologia das Religiões Afro-Brasileiras, Psicologia da Educação, Psicologia da Saúde, entre outros, na Universidade de Rio Verde - FESURV.
Participa dos projetos de pesquisa: "Explicação do Comportamento: Antropformismo e Zooformismo", "A Atribuição de Emoções em Traços Faciais Artificiais" e "Do Particular ao Universal: Estratégias e Métodos de Sobrevivência da Religião dos Orixás no Mundo Moderno Globalizado"
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